domingo, 3 de abril de 2016

QUEM VÊ CÉLULA NÃO VÊ RACISMO

Quando estudamos os processos de divisão celular, mais especificamente a mitose, nem imaginamos a história que está por trás de uma simples linhagem de células.


Na década de 1950 Henrietta Lacks, uma ex-lavradora afro-americana do sul dos EUA, então com 30 anos e já mãe de cinco filhos, passou a sentir um caroço na altura do útero e foi diagnosticada com um tumor cervical. Enviou células para o conceituado Johns Hopkins Hospital. Desenvolvera um tipo de câncer que produzia metástases rápidas (mais do que qualquer outro tipo).
Após a morte de Lacks, suas células continuaram sendo cultivadas para estudo, dada sua incomum longevidade. Desta forma, tais células foram distribuídas por diversos laboratórios do mundo. O Dr. Jonas Salk, por exemplo, as utilizou para produzir uma vacina contra a poliomielite.
Essas células são cultivadas até hoje em vários laboratórios do planeta! Milhares e milhares de trabalhos científicos foram (e continuam sendo) realizados empregando-as.

Experimentos com gravidade zero, pesquisas para busca da cura do câncer e da AIDS, estudos sobre os efeitos da radiação, mapeamento genético... As células HeLa (acrônimo pelo qual ficou conhecida a linhagem de células descendentes das células tumorais da senhora Lacks) deram suporte para avanços significativos nas ciências médicas.
Calcula-se que a quantidade de células existentes nos laboratórios de todo o mundo supere o número de células da senhora Lacks em vida!

E vocês devem pensar: quanto orgulho os descendentes da senhora Lacks devem ter de sua matriarca!

Creio que devam sentir mesmo, mas, infelizmente, essas células não foram "doadas" de livre e espontânea vontade. Em 1951, sequer existia hospital suficiente para a população afro-americana. O John Hopkins era um dos que "aceitava" tratar "negros". O caso Lacks, ao longo dos anos, trouxe a tona a investigação de muitos outros casos em que homens e mulheres afro-americanos eram utilizados como verdadeiras cobaias humanas sem o menor respeito aos princípios bioéticos básicos que hoje pra nós parecem óbvios. Não havia consulta, nem aos pacientes, nem a seus familiares. Ninguém sequer era comunicado que se estava "doando algo".

A escritora Rebecca Skloot escreveu o livro The Immortal Life of Henrietta Lacks (A vida imortal de Henrietta Lacks), que ajuda a contar um pouco dessa história intrigante (e chocante).

Quando for vacinar seu filho contra a poliomielite, quando for se tratar de um câncer (ou quando for dar apoio a alguém que vá se tratar), ou mesmo quando for estudar mitose para o ENEM (ou qualquer concurso): lembre da Henrietta Lacks! Reflita sobre os limites da ciência e sobre a ética nos experimentos. Lembre-se que, uma mulher negra, trabalhadora, mesmo sem querer e sem saber, contribuiu com sua vida para o avanço da ciência e nem mesmo seus descendentes receberam nenhum reconhecimento por isso.

Veja também a página da Henrietta Lacks Foundation,  a qual tem como objetivo prover assistência financeira a pessoas que deram suporte a pesquisas sem seu livre consentimento (em geral, afro-americanos).